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Em uma sala de reconhecimento de possíveis suspeitos de um crime, uma pessoa negra se destacava no grupo formado por brancos. Estava claro que o negro seria apontado como o culpado. A situação foi evitada quando representantes do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) “aumentaram o número de corpos negros” entre os suspeitos e evitaram a condenação prévia, fruto do racismo estrutural incutido na sociedade.

Casos como esse têm encontrado amparo no Judiciário para combater o racismo e transformar a cultura com o reforço de posturas antirracistas. Por meio de medidas, ações afirmativas e normativos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) fomenta debates e constrói soluções para enfrentar as questões raciais ao longo de seus 20 anos de existência. As iniciativas contemplam não apenas a forma de julgar os processos como também a equidade racial no Judiciário.

Segundo Djefferson Amadeus, diretor de Advocacy do IDPN, o instituto nasceu da necessidade de ocupar espaços na advocacia e continuar a luta de seus ancestrais. “Se tivemos o privilégio de estudar, queremos devolver isso à sociedade, fazendo uma advocacia diferente”, afirma.

Para ele, o fato de poder se manifestar diante do Supremo Tribunal Federal (STF) e defender causas referentes às questões raciais já demonstra mudanças. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como ADPF das Favelas, é um dos casos. Nela, foram estabelecidos protocolos e regras para as operações policiais em comunidades, garantindo o respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. “Esse julgamento é um marco histórico na luta pela garantia da vida e da dignidade dos moradores de favelas e fomos uma das instituições ouvidas como ‘amicus curiae’, trazendo um novo olhar sobre essas questões”, destacou Djefferson. 

Ainda assim, o diretor do IDPN destaca que o racismo é algo sutil e que se reinventa na sociedade. “Racismo não é só chamar de nomes pejorativos, mas é sentido no olhar, no tom da voz. E, por ser sutil, é mais complexo”. Para ele, a discriminação se materializa quando se aceita condenar uma pessoa negra pelo depoimento de uma única testemunha ou quando não se ampliam as investigações pelo pressuposto de que a cor indica a culpabilidade, além de apresentar resistência a argumentos com base no racismo estrutural e institucional.

Ele reconhece, porém, que há avanços. Um exemplo é a criação, pelo CNJ, do Protocolo de Julgamento com Perspectiva Racial, que traz um contexto sobre a questão para um Judiciário majoritariamente branco. Djefferson Amadeus destaca que o protocolo exige que as consequências do racismo estrutural sejam devidamente consideradas na condução de um processo e na tomada de decisão. “A luta de cada um é de todos. O papel dos brancos é fundamental para mudar esse quadro. Hoje, nenhuma pessoa branca tem culpa pelo que foi feito [na nossa história], mas tem a responsabilidade pelo privilégio que viveram às custas do povo negro”, avalia.

Instituído pelo CNJ por meio da Resolução n. 598/2024, o protocolo incorpora parâmetros de igualdade racial e direitos humanos aos serviços da Justiça e serve como um guia para a magistratura quanto aos impactos do racismo em todas as suas dimensões. O normativo aponta, ainda, as interseccionalidades com questões de gênero, sexualidade, idade, deficiência, orientação religiosa e origem. Além disso, detalha situações que envolvam racismo estrutural e institucional contra pessoas em situação vulnerável, como crianças, jovens, mulheres, populações quilombolas, pessoas em situação de rua ou privadas de liberdade.

Foi com base no protocolo que a advogada negra Olívia Maria Felício resolveu entrar com um processo por danos morais contra um aluno que a desrespeitou. Quando terminou seu mestrado em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Olívia foi convidada por um colega para dar uma aula sobre direitos humanos e direitos fundamentais.

Enquanto se preparava para a semana de palestras, ela começou a receber mensagens privadas em suas redes sociais. “Os próprios alunos começaram a me enviar mensagens, com prints das conversas da turma, sobre a expectativa para as aulas. Um dos alunos debochou, usou termos racistas, machistas e sexistas”, conta a advogada. Os comentários racistas a abalaram ao ponto de ela cancelar sua participação no evento. “Entrei em contato com a coordenação do curso, em que ia palestrar para alunos do 4.º e 5.º período de Direito, e eles me deram todo o apoio”. 

Depois de registrar um boletim de ocorrência na delegacia e com o acompanhamento de uma psicóloga, ela decidiu entrar com o processo, tendo a representação de outro advogado. “O racismo acompanha a nossa vida, mas nem sempre conseguimos entender o que acontece”, disse. Ela também publicou um vídeo nas redes sociais sobre a questão, pois, à época, trabalhava na Secretaria de Direitos Humanos de Belo Horizonte. 


Atualmente, Olívia atua na advocacia popular e participa no Comitê Regional PopRuaJud, voltado ao atendimento a pessoas em situação de rua. “Mesmo trabalhando junto aos vulneráveis, tive medo, mas encontrei um Judiciário mais humanizado, que tem capacitado os juízes e as juízas para tratar as pessoas na horizontalidade”. Ela destacou que o protocolo proporcionou mais segurança às questões de raça e, por isso, resolveu expor a situação e ir para a Justiça, para que outras pessoas tenham conhecimento dos seus direitos e não passem pela mesma situação.

Ainda sobre o protocolo, a advogada reforça o quanto são necessários para enfrentar algumas estruturas. “O protocolo auxilia até mesmo como o acolhimento deve ser feito. A população negra é barrada em todos os espaços, mas, quando isso não acontece no Judiciário, isso nos mostra que temos acesso aos nossos direitos”, enfatizou.

Validação

O acolhimento também foi o que fez a historiadora, pedagoga e assistente social Marlla Angélica dos Santos prestar queixa contra um ataque racista que sofreu na porta de sua casa, em 2023. Ela chegava de carro, enquanto dois homens brancos andavam no meio da rua. Eles teriam se irritado quando ela reduziu a velocidade para entrar pelo portão. Quando Marlla desceu do carro, os homens a xingaram. O filho de Marlla ouviu os gritos e foi agredido quando tentou defender a mãe. Pessoas que passavam pela rua interferiram e ajudaram a afastar os homens. 

Marlla chamou a Polícia Militar, que localizou os suspeitos em um bar, próximo à casa dela. Eles foram presos e liberados após audiência de custódia. Em outubro daquele ano, a Justiça os condenou por discriminação racial, lesão corporal e ameaças. O caso foi o primeiro enquadrado, no Distrito Federal, à lei que equiparou o crime de injúria racial ao de racismo (Lei n. 14.532/2023). “A gente se sente culpada por existir, por estar ali. O processo todo foi rápido, mas doloroso”, lembrou. 

A assistente social disse que recebeu muito apoio, mas também muitas críticas. “A gente precisa se valer dessa pauta para dar continuidade à luta pela transformação social. Nesse caso, no entanto, meu lugar de fala era de vítima e não, de ativista”, destacou. Ela contou ainda que, ao chegar ao Judiciário, se sentiu acolhida, pois em nenhum momento duvidaram de sua palavra ou a desacreditaram. Pelo contrário, o juiz e o promotor levaram o caso a sério, culminando na sentença condenatória. “Ainda é preciso letramento racial em todas as esferas, para que a nossa dor não seja invalidada. Desde crianças, temos que começar a crescer com antídotos antirracistas”, defendeu.

Desafios no Judiciário 

Em Porto Alegre, a assistente social e coordenadora de Programas de Aprendizagem Profissional e Juventudes, Maíra Santos*, enfrentou o racismo ao tentar adotar uma criança. À época, ela trabalhava em um abrigo institucional quando conheceu a bebê. “Ela se apegou a mim e eu me rendi. Ela tinha dois anos de idade e eu fiz todo o trâmite legal para adotá-la”, conta.

Em 2013, seguindo a orientação de uma promotora, Maíra deixou de atender no abrigo em que a criança estava acolhida, pediu a guarda, esperou a destituição familiar e, mesmo assim, teve o pedido de adoção negado duas vezes. Mulher negra e mãe solo, Maíra sentiu que foi discriminada. Ela passou por avaliação da equipe técnica e, mesmo que o relatório não indicasse motivos específicos para a negativa, recomendava mais avaliações para ter a certeza do vínculo e a estrutura física do ambiente em que a criança viveria. “Levei quatro anos para conseguir adotar minha filha. Tenho certeza de que uma mãe branca não passaria por isso”, destacou.

Para ela, a sutileza do racismo novamente foi a base para que seu processo não caminhasse. “Trabalhei em abrigos e sei que as crianças negras têm mais dificuldades para serem adotadas. Os profissionais que fizeram minha avaliação é que colocaram barreiras, já que eu não fiz nenhuma mudança radical no meu ambiente e modo de vida até finalmente ter a sentença pela adoção”. 

Segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), gerido pelo CNJ, das 5.260 crianças aptas para adoção, mais da metade (56%) são pardas, e 16,4% são pretas.

Ao começar a convivência com a criança, Maíra também levava o irmãozinho dela para casa. Isso possibilitou que um casal de amigos — brancos — entrasse na fila para adotá-lo. Em 2017, no dia da audiência concentrada, a juíza perguntou se as crianças queriam ficar com aquelas famílias, e as crianças disseram que só responderiam na presença dos pais. “Esse pedido deixou claro para a juíza que eles tinham nos escolhido. Meus amigos e eu conseguimos adotá-los dessa forma: com um amor que brotou e que se tornou a maior conquista de nossas vidas”. 

*Nome fictício para proteger a identidade da fonte

Equidade racial

Para enfrentar o problema do racismo e aprofundar as políticas antirracistas no Judiciário, o CNJ também intensifica, ao longo de sua história, ações para acelerar a equidade racial nos tribunais. As medidas buscam, principalmente, que o Judiciário espelhe a realidade demográfica da população brasileira, composta por maioria negra, contemplada no termo “pretos e pardos”. De acordo com dados do Painel de Monitoramento Justiça Racial, 74.204 pessoas do Judiciário são negras, o que representa 24,76% de todo o contingente. Desse total, 13,24% são magistrados e magistradas (2.506) e 25,54% são servidores e servidoras negros (71.698). 

Uma dessas iniciativas foi, em 2015, a edição da resolução que prevê a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura a pessoas negras. “Essa política afirmativa me deu esperança de ser magistrado”, conta o juiz Malcon Jackson Cummings, titular na comarca de São João do Ivaí, no norte do Paraná.

Aprovado em 2019 pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), o juiz disse que sempre precisou trabalhar e estudar e, por isso, a política de cotas tornou seu sonho realidade. “O sistema de cotas não veio para diminuir o sistema de justiça, mas para trazer a igualdade e a inclusão. Quero que mais pessoas como eu vistam a toga”, ressaltou. Preto retinto, o juiz destacou que sofria preconceito durante a faculdade, mesmo sem ser cotista, como se a ação afirmativa fosse um motivo para ser excluído. “A cota não é favor. É uma reparação histórica”, destacou.

Servidor público desde os 18 anos, Cummings trabalhou como agente de transportes, assessor do Ministério Público e procurador municipal até chegar à magistratura. Mesmo assim, ele contou que sempre precisou mostrar que estava acima da média. Ele também não se via representado no Judiciário até ter contato com representantes do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros (Enajun). “Hoje, quero ser uma referência também para meninos e meninas que sonham em ocupar lugares como o que estou”. 

A importância desse lugar se revela no dia a dia da jurisdição, onde Cummings lida com a população carcerária. No contexto em que a maioria da população carcerária é composta por pessoas negras, há mais empatia quando os presos vão à audiência e se deparam com um juiz negro. “Um rapaz que eu prendi, ainda assim se identificou comigo e me admirou pela minha posição. Então, estou aqui não só por mim, mas por todos os que se sentem representados e pelos que virão”, afirmou.

Para ele, ainda é preciso explorar mais matérias de questões raciais nas faculdades e nas escolas de formação da magistratura. “É preciso uma formação contínua para que interpretem melhor o Protocolo [de Julgamento sob Perspectiva de Raça], por exemplo”. Cummings disse que, em sua juventude, foi ensinado por seus pais a não reagir a uma abordagem policial. “Agora, temos um instrumento que nos permite qualificar nossas decisões e nossos procedimentos, levando essa realidade em consideração”. 

Em abril deste ano, o magistrado participou do programa Link CNJ sobre racismo estrutural. Assista abaixo à íntegra do programa:

Este texto faz parte da série “CNJ 20 anos”, que será publicada ao longo dos próximos meses para mostrar os diversos públicos alcançados pelas ações do Conselho

Por CNJ